segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Tirar fotos – Win Wenders

Bater fotos é uma ação no tempo na qual alguma coisa é arrancada de seu próprio tempo e transferida para um tipo diferente de duração.  Em geral se acredita que o que é capturado nesse ato está DIANTE da câmera.  Mas isso não é verdade.  Tirar fotos é uma ação em duas direções:  para a frente e para trás. Sim, tirar fotos também "sai pela culatra". Essa comparação nem é tão capenga. Assim como o caçador ergue sua espingarda, faz pontaria no cervo a sua frente, puxa o gatilho e, quando a bala sai do cano, é jogado para trás pelo coice da arma, o fotógrafo, analogamente, é jogado para trás, para si próprio, quando aperta o botão da câmera. Uma fotografia é sempre uma imagem dupla, mostrando, à primeira vista, seu objeto, mas, num segundo olhar - mais ou menos visível, "escondido atrás dela", por assim dizer -, o "contracampo": a imagem do fotógrafo em ação. Porém, assim como o caçador não é atingido pela bala, mas apenas sente o coice do disparo, essa contraimagem contida em toda fotografia tampouco é capturada pelas lentes. (Embora de algum modo permaneça inextricavelmente na imagem, como uma impressão invisível do fotógrafo, que até chega a ser revelada na química da câmara escura....)

Em alemão, há uma palavra muito reveladora para esse fenômeno, uma palavra conhecida em uma
multiplicidade de contextos: EINSTELLUNG. 
Significa a atitude com que alguém aborda alguma coisa psicológica ou eticamente, isto é, o modo de você entrar em sintonia e então "absorver" a coisa. 
Mas Einstellung é também um termo de fotografia e cinema, que significa tanto o take (uma tomada específica e seu enquadramento) quanto o modo como a câmera é ajustada, em termos de abertura e da exposição mediante as quais o homem da câmera "tira" a foto.
Sim, para a frente, a câmera vê seu objeto, para trás vê o desejo de captar esse objeto específico em primeiro lugar, mostrando assim simultaneamente AS COISAS e O DESEJO por elas.
ou ROSTO
ou GESTO
ou PAISAGEM
ou ESTADO DE ÂNIMO
ou simplesmente porque uma SITUAÇÃO quer ser apreendida.
Cada fotografia fala sobre a vida e a morte.
Cada "imagem capturada" tem uma aura de sacralidade, transcende o olho do fotógrafo e excede toda capacidade humana: cada foto é também um ato de criação fora do tempo, da perspectiva de Deus, por assim dizer, relembrando aquele mandamento cada vez mais esquecido: "Não modelarás imagens".
Tirar fotos é sempre um ato de presunção e rebelião.
Tirar fotos, consequentemente, instila ganância e, com muito menos frequência, modéstia. 
(É por essa razão que a atitude de jactância (vaidade, orgulho, arrogância) é muito mais comum em fotografia do que a atitude de humildade.)
A cada segunda imagem, a "montagem" já está em curso, e a história que se anunciou na primeira imagem está agora seguindo sua própria direção, definindo seu senso de espaço e antevendo seu senso de tempo. Às vezes novos atores aparecem, às vezes o suposto protagonista revela-se apenas um coadjuvante, e às vezes não há ninguém no centro, apenas uma paisagem.
Elas se evocam, chegam a fazê-las acontecer. Paisagens podem ser, elas mesmas, personagens principais, e as pessoas dentro delas, as figurantes.
Um cartaz no fundo do quadro!
O carro enferrujado projetando-se para fora de um dos lados da foto!
Uma cadeira!
Disposta ali de tal maneira que alguém devia estar sentado nela até poucos momentos atrás!
Um livro aberto sobre uma mesa com metade do título legível! 
O maço de cigarros vazio na calçada!
A xícara de café com a colherinha dentro! 
Nas fotos, COISAS podem ser serenas ou tristes, até mesmo cômicas ou trágicas.
Em muitas fotos, elas são a parte mais interessante.
A meia baixada no tornozelo de uma criança!
O colarinho virado pra cima de um homem que só vemos de costas!
Manchas de suor!
Dobras!
Cerzidos e remendos!
Botões faltantes!
Uma camisa engomada!
A vida de uma mulher resumida toda em seu vestido, sua vida inteira revelando-se nas dores de um vestido!
O drama de uma pessoa expresso por um casaco! 
Roupas indicam a temperatura de uma imagem, a data, a hora do dia, tempo de guerra ou tempo de paz.
Só ATRAVÉS da imagem capturada o tempo se torna visível, e no lapso do tempo ENTRE a primeira tomada e a segunda emerge a história, uma história que, não fosse por essas imagens, teria caído no esquecimento pela mesma eternidade.
É "ALI" que as histórias ganham vida, no olho do observador.

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